INVENTÁRIO R.


Do que sei, nasci e fui criado mais ou menos assim: de  um pai e uma mãe  casados formalmente. Mãe nascida em 1947 nessa Goiânia, mais próximo de Aragoiânia, numa fazenda. Na verdade numa roça, um sítio, visto que seus pais não eram fazendeiros que ganhavam milhões cultivando grãos e criando gado de corte, porém tinham algum gado do qual o leite minha vó utilizava  para fabricar queijo fresco. Possuíam também algumas rocinhas de alimentos que eles mesmo consumiam , o milho, mandioca, hortaliças, frutos e mais como a cana, da qual meu avô fabricava um produto que comercializava,  a rapadura. Vinha uma ou duas vezes na semana  à Goiânia como feirante, vendendo principalmente  a sua rapadura, os queijos de sua companheira e alguns frutos mais que tirava da sua terra e das de outros vizinhos: limão,  jabuticaba, manga, mexerica e outros.
Minha mãe é filha primeira desse casal, Benedita Teles e Geraldo Rita da Silva, pais de outros sete irmãos dessa Maria Francisca da Silva. Assim, minha mãe já vinha sendo mãe desde sua infância, cuidando de seus irmãos e irmãs. Às vezes acompanhava seu pai Geraldo nas feiras. Frequentou juntamente com toda a sua família a procissão e os festejos da igreja Católica organizada na cidade de  Trindade. É a Romaria, evento todo ano ainda presente no calendário.

Meu pai: Antônio Pereira da Cruz nasceu em 1945, nortista, no norte de Goiás, hoje Tocantins. Imbuído aí de algumas características triviais aos que são nascidos em tal região, características essas que vem me incitando a investiga-las com melhor agudez. Também nascido em zona rural, filho do casal Helena Brito da Cruz e Adão Pereira Mota. Ouço pouco sobre meu avô paterno, nunca o vi e meu pai tinha aproximadamente 5 anos de idade quando ele morreu. Indagarei novamente meu pai sobre suas poucas lembranças de meu avô, inclusive se os nomes completos de seus pais são como os mencionei. Com essa vó também convivi pouco, as minhas experiências nortistas eram mais fortes quando visitávamos  alguns parentes paternos, dormindo em sítios naquelas regiões acerca de Pugmil, a cidade - até hoje uma cidadezinha - onde meu pai nasceu. As alegrias que pude viver tomando banho em pequenos rios desses lugares e brincando em suas terras vivo hoje quando vou ao Jalapão.

De onde os pais de meus pais vieram? Essa é uma questão que meus pais não sabem responder. Sabe-se que suas famílias já surgiram de outras que nessas regiões habitavam. Provavelmente de linhagens portuguesas, mas com certeza do processo de misciginação. Ouço às vezes sobre uma vó índia, mãe de meu avô materno, que foi 'pega no laço', noto vestígios de cabelos crespos vendo fotos desse avô Geraldo e em alguns tios, o que herdei em parte. Por parte de pai, há tios que tem peles mais escuras e cabelos semelhantes a de índio. 

Meu convívio maior e mais frequente foi com os parentes maternos, avós, tios e primos. Presenciei algum ou outro pouso de folia que ocasionalmente acontecia –e ainda acontece – no sítio de minha vó Benedita e outras vezes de minha tia Joana. Presenciei somente, vendo, assistindo, escutando, observando. Não posso afirmar que tal festejo popular faz parte de minhas raízes. Muito mais forte é a lembrança de momentos vividos nesses sítios – incluindo aí o sítio de minha madrinha e tia-avó materna Lourdes – andando em trilhas nos pastos e matos, pescando, retirando as minhocas que serviriam como iscas, do chão, brincando de tudo, tomando leite de vaca retirado diretamente de suas mamas no curral, chupando manga e jabuticaba, dormindo com som da bica d'água e grilos e acordando  com canto de galo e berro de gado, sentindo o cheiro do esterco, banhando em córregos, andando a cavalo, apanhando folhas de alface na  horta e... participando 'na marra' de alguns terços que minha vó sempre rezou de noite antes de dormir. 

Meus pais são católicos praticantes, como já eram seus pais. Eu, a medida que fui me tornando um adulto fui conseguindo fugir mais das obrigações da missa de domingo e da 'crisma'. Batizado fui na igreja católica e cheguei a fazer a '1a comunhão'. Entretanto, a igreja apostólica romana  não foi um lugar que eu pudesse sentir fé, devoção ou  religiosidade. Eu não ia a igreja por que queria, eu obedecia meus pais e cumpria as missas. Porém, não considero-me um descrente. Comecei a encontrar a minha igreja quando saí viajando para lugares de natureza virgem, a começar pelas cachoeiras de Goiás. São nos instantes desse encontro que vislumbro aquilo que há de mais religioso em meu corpo, através da minha entrega, num mergulho de rio, numa caminhada no meio da floresta, num banho de mar...

Quando investigo minha vida procurando raízes, o que encontro de mais ancestral são as memórias e vontades que tenho de - e - sobre tais paisagens. Sinto-me, quando vou a tais lugares, num processo de des-civilização, percebo me com sangue e jeito de índio. E mais, tenho sensações que na cidade não seria possível tê-las. Sensações despertadas quando estou debaixo de alguma cachoeira, andando em alguma trilha donde não se ouve nem se vê sujeira, ruídos e vozes da cidade. Sensações que são despertadas quando  piso descalço terras e areias limpas, quando  tomo banho de lama, subo em árvore alta, quando  respiro ar sem fumaça de gasolina ou quando entro em mar longe das praias urbanas. 

Matrizes encontro  nessas complexidades  hereditárias e culturais presentes entres as linhas que traçam a minha personalidade e individualidade. Encontro me daí, jardineiro. A roça que hoje planto, não é de milho nem mandioca, como faziam e precisavam meus avós. Planto árvores, arbustos, e tantas quantas espécies de frutas, flores e outras que possam habitar meu jardim-pomar-quintal-bosque-horta. Maiores planto onde há mais espaço, trato de algumas na praça, em um chácara e na porta da minha casa. 

...


MATUTO

Inventário sou eu quem invento? Invento de fazer o quê? ou, invento o quê? a minha ancestralidade? inventar algo que já existe e sempre existiu e existirá? pelo que posso conceber dentro da limitação do tempo e espaço...

Invento de ser o que está lá, guardado e dormindo dentro de mim. Um arquétipo, um ser ancestral, um totem. Um silvestre animal, que muge, assim, um homem, um tanto rude. Sua voz é de berro, seu talento é de matuto. Vaqueiro de sua vaca, mateiro com sua enxada. Mais faz do que fala, mais olha do que pensa. Expressa modos de pedir licença e todo fim e início de dia aos céus pede bença.

Está cerrado dentro de mim
A vastidão desse espaço
De natureza exuberante
Rompem me correntes d'água
Sementes, brotos e botões
Rasgam me a carapuça
Saio de onça e caço
Caço...

Um comentário:

  1. Lendo o que você escreveu sobre essa parte do inventário, é possivel perceber uma intensa relaçao com a terra, sendo a paisagem algo que você carrega muito mais presente em seu corpo do que as personagens que envolve sua história. É como se a paisagem fosse ao mesmo tempo cenário e personagem. Assim como se pesquisa uma manifestaçao popular genuina, é possivel investigar uma paisagem em que se tem uma relaçao afetiva, gerando assim possiveis matrizes de movimento no corpo.
    A paisagem carrega consigo uma relaçao com um lugar vivido, estendendo-se muito além de seus sistemas e estruturas fisicas, relacionando-se aos processos de cogniçao, percepçao, afetividade, memória e construçao de imagens. Muitas vezes, para entendermos essa paisagem vivida é necessario que estejamos imersos numa relaçao corpo/espirito/paisagem com os espaços que se prolongam em sua própria existência às dimensões do imaginário, do simbólico, porque estão delineados e coloridos pelos sentimentos. A maneira de experienciar as paisagens proposta pelo métodos BPI incorporam as interaçoes imanentes ao significado de vivido, derivando uma gama de percepçoes, valores, e atitudes diante de espaços e lugares que nos conduzem à percepçao de outras realidades geográficas que extrapolam as coordenadas cartesianas, as mensuraçoes matemáticas, as demarcaçoes de meridianos e paralelos, para fundamentarem-se em bases fenomenológicas. A professora Graziela Rodrigues tem uma definiçao que gosto muito: “(...) defino Paisagens como sendo os espaços onde se desenvolvem experiências de vida, que se instauram no corpo".

    Essa paisagem vivida preserva e transmite ao longo do tempo de cada história pessoal, os valores e percepçoes de uma cultura, cristalizando em si o tempo vivido. Nesse sentido, pessoas e paisagens encontram-se em uma fusão afetiva permanente, onde topofilia (relaçao de afeto com o lugar) e topofobia (relaçao de aversão ao lugar) implica o reconhecimento de espaços e lugares muito além da realidade terrestre: de uma paisagem interna construida a partir da concretude dos laços com o exterior, pois são multiplos os simbolos, as imagens, os sentimentos e expressões. Espero que tenha ajudado! Se tiver muito confuso, já que escrevo esse texto perto da meia noite, pode falar :-D
    Mas gostei muito do que você escreveu! Traz muita imagem aí!

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